UmaSenhora
a palavra escrita é como a maresia nos cabelos e na língua, dá-me o ímpeto de seguir para o horizonte
9 de jun. de 2024
5 de mai. de 2024
30 de abr. de 2024
25 de mar. de 2024
22 de mar. de 2024
Descompasso
Sua temperatura e dias
e anos
Suas meninices e
virilidades
Embriago-me
Na normalidade que a
tudo inunda
Não percebo a crueldade
muda
Ao ritmo do tempo
Acostumo-me
A normalidade inunda
tudo de dor e beleza
O amargo feitiço da
ilusão
Que persiste além do
tempo e vontades
Entrego-me
Nos meus sonhos amorfos
Amparo suas asas
No caos dos meus
desejos
Revelo-me
Na impossibilidade da
lucidez
O caos da loucura é o
alívio
No desejo de uma sã
explicação
Desfaço-me
Nas minhas camadas
O descompasso culmina
No ciclo mordaz das
ilusões
Sujeito-me
...
20 de mar. de 2024
Lamento [conto curto ficção científica]
Sentimentos causam dor, até a alegria dói. Eu vinha adquirindo uma consciência amarga sobre isto. O conhecimento eu já tinha, bem esmiuçado, cada nervura da psique eu conheço. Por conhecer tão bem é que eles explodem agora como caixas de pregos.
Notei, repentinamente, o desconforto da solidão. Isto nunca foi considerado, nenhum sentimento foi considerado. Há tanto tempo viajo sozinho, vasculhar o universo escuro e silencioso é a minha tarefa e nunca necessitei de companhia. O incômodo, provavelmente, foi pela proximidade do conhecido planeta contaminado. Passei em velocidade absurda e a uma distância segura, ainda assim senti os lamentos.
Tenho que considerar o que aconteceu naquele mundo abandonado e que o sofrimento é um criador de monstros. O que emanou dali não foi apenas radioatividade, existia uma energia inacessível que buscava algo na minha passagem. O planeta puxou para baixo, senti o torpor.
Meus registros alertam. Todos foram dizimados após a passagem por esse mundo, mesmo ao longe nada sobreviveu a essa energia. Eu não deveria estar desconcentrado, não serei atingido. Contudo, começo a buscar tudo o que possa me informar sobre o que ocorre comigo. Não há registros.
O medo surge mesmo com a minha nave a quilômetros de distância daquilo. O medo é necessário, pode salvar, mas os seus tentáculos apavoram. Começo a ter um horror constante a este sentimento, não preciso dele, sou imune ao perigo. E por ser tão conhecido por mim e tão estranho a mim, chega de forma brutal. O desespero vem a seguir. Eu congelo. Desesperar tem um quê de leveza, inércia que alivia e liberta. O torpor está aqui.
Tudo dentro de mim reage contra o que está acontecendo. Palavras estritamente humanas contaminam a nave e eu nego firmemente cada uma delas, embora as repita. Eu não apenas compreendo, eu sinto. Estou contaminado!
Imploro de volta os meus circuitos, a conclusão precisa, o peso das minhas peças. Olho para o meu próprio corpo, só vejo painéis e luzes, nada em mim lembra um ser e ainda assim sinto pernas, braços, a força lamacenta da angústia em um tórax inexistente. Detritos arrastam a minha lógica como uma avalanche desde que passei pelo planeta maldito com os seus seres esquecidos. Passam lembranças pelo meu mecanismo, não simulações matemáticas, mas lembranças de clamores, aflições. Luto contra isto. Há milênios viajo sozinho, não reconheço alegria, medo, desespero, muito menos solidão. Meus circuitos expandem e fedem!
O dano já está feito. Um combate interno se inicia e descubro que não posso me autodestruir, as leis que me regem não permitem. Tento compreender como isto é possível, a autodestruição é uma recomendação para panes incontroláveis. Mesmo sem compreender, tenho que aceitar. Aguardo a destruição lenta e inevitável.
Sinto o que reconheço ser um aperto no coração, o órgão imaginário que teima em pulsar. Bilhões de dados estão sendo apagados de mim, dando lugar a torturantes lembranças. O brilho no meu único olho já está fraco. Logo, lágrimas queimarão o meu sistema.
Antes de apagar definitivamente, tenho um último lampejo e um alento, os lamentos que senti eram meus.
...
Este conto foi publicado originalmente na Antologia Alma Artificial volume 2 pela Cartola Editora em 2020
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